Data: Outubro de 1999
Nota: Na sua apresentação: "UM HOMEM DO SERTÃO".
O sertão guarda, no corpo imenso de serrotes, chapadas e devesas agrestes, as cicatrizes de duzentos anos de lutas, dois séculos enfrentando o destino na mira de seus rifles reiúnas e na ponta acerada de seus punhais rabo de galo. Foi assim em Canudos, assim é ainda hoje, inviolado - porque não rasteja e nem pede perdão. Os sertões são os Ferraz e Novais, Pereira e Sá, Jurubeba e Sampaio, Goyana e Jardim, Alencar e Saraiva. São nomes insculpidos nas rochas de suas encostas gretadas, mas onde a honra se escreve com "H" maiúsculo. É uma terra que nem dá e nem pede quartel. O sertão é Floresta e Juazeiro, Serrita e Flôres, Triunfo e Pedra, Mata Grande e Santa Maria da Boa Vista, Jatobá e Patamuté e a solidão infinita do Raso da Catarina. É a personificação geográfica da dor e da injustiça, mas, por outro lado, da coragem e da vindita. Lampião, quando se temia de homens, chamavam-se eles Mané Neto, Euclydes e Odilon Flor, Gomes Jurubeba e Hercílio Nogueira. Não fugia, na extrema de uma luta perdida, de "mestiços neurastênicos do litoral", como diria Euclides da Cunha, mas de titãs de alparcatas de couro cru e fuzis aperrados. E este sertão de Princeza e Nazaré, Serra Talhada e Sertânia, não se dobrou, jamais, se não à dignidade e ao dever. O que sempre teve de melhor na força militar de Pernambuco foi o sertanejo dessas regiões esquecidas. A terra da justiça pessoal, intransferível, sem a interferência conivente da lei, elaborada bem longe da trilha das "esperas", emboscadas e recontros peito-a-peito. A lei oriunda da corrupção do poder elitista, sem força diante da exasperação cíclica de centenárias questões familiares. E essa lei fraldiqueira pouco vale, e quando vale!, defronte da pobreza, das perseguições e das pugnas no soalheiro do Alto São Francisco ou nas ribeiras escaldantes do Pajeú. Aí, nessas paragens de uma sociedade de parentes, decide-se o pleito no enfrentamento e na justiça sumária do "código ético", de que fala Frederico Pernambucano. Aí não pontificam as regras forenses: estrondejam os mosquetões de Jesuino Brilhante e Sinhô Pereira, Cassimiro Honório e Luiz do Triângulo ou das espingardas mortíferas de Antonio de Matilde e Ângelo Roque. É o ranger de dentes de uma raça forte, constitutiva do povo brasileiro, e sua civilização original, neste pedaço de nordeste ensolarado, e que sobrevive, heroicamente, nos campos estorricados, limitados, lá longe para o sul, pelo Liso do Suçuarão, passando pela Chapada Diamantina e indo debruçar-se, soberbo, sobre as lançantes da cumiada do Araripe e as ardências do vale do Jaguaribe.
E neste mundo de heróis, Theophanes Torres foi personagem de uma saga memorável, que, hoje, à luz da História, destaca-se pela grandeza de seus tipos. Sentando praça bem moço, na polícia militar de Pernambuco, teve a sorte de prender Antônio Silvino no início de sua missão, ganhando imediato renome. Mas, apesar da carreira militar brilhante, não recebeu, até este livro de seu neto Geraldo Torres Filho ser publicado, a crítica justa, que o levasse a ser visto e compreendido, dentro de seu tempo e no contexto do cangaço, com justiça e isenção. Chefe amigo de seus soldados e oficiais, foi, esta dedicação, um traço de caráter efetivo e afetivo, por toda a vida, sem medir sacrifícios. Às acusações que lhe fizeram, contrapõe-se a vocação que o levou, numa época de extrema violência e em ambiente hostil, a vaguear pelos caminhos do sertão, à caça de homens revoltados, de coragem inacreditável, e que se chamaram Cristino Gomes da Silva Cleto, Luiz Pedro do Retiro e Marcelino Ribeiro, guiados por um guerrilheiro-símbolo que assinalou, na História do Brasil, o período mais sangrento da formação social do povo nordestino: VIRGULINO FERREIRA DA SILVA.
Debruçado sobre o sertão e suas famílias, tem o historiador um microcosmo de fatos implacáveis, e, entre eles, nos componentes de ações que os formam, este comandante de "volantes", nas trilhas dos carrascais das caatingas no único serviço que prestou: dedicação exclusiva à vida militar no combate ao cangaço. Morrendo moço, em 1933, com apenas 39 anos, participou intensamente deste drama. E morreu, afirmo, desiludido, depois da bernarda quarteleira de 1930, que teimam em chamar de "revolução", ao ser perseguido porque cumpriu um dever de lealdade, e as assistir alçarem-se, premiados, os oportunistas e os medrosos. Theophanes Torres não soube, não aprendeu e não quis trair. E, não traindo e nem conseguindo morrer de arma na mão, foi traído pelo coração e se foi longe dos campos comburidos dos grotões do Brígida e do Pajeú, do Panema e do Moxotó, onde estiolou a brevíssima mocidade lutando pela lei, em recontros memoráveis, que a História resguardou para sempre. GRAVATÁ/Out./99.